sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Vós sois deuses?



Autor Alexandre Giovanelli





Vós sois Deuses e se o quiserdes podereis fazer o que eu faço e muito mais...” Essa é uma frase que realmente nos faz refletir sobre o poder divino de que somos portadores e do qual muitas vezes negligenciamos, seduzidos que somos pelas ilusões do mundo material. Vale a reflexão, embora esta frase não exista ipsis litteris na Bíblia.

Cabe aqui uma explicação. O trecho citado é composto por duas sentenças que foram apostas, mas que são encontradas em duas passagens bem distintas do evangelho de João e associadas a contextos diferentes. Na primeira, Jesus passeava no templo, no pórtico de Salomão, quando os judeus começaram a interrogá-lo se Ele seria mesmo o Cristo previsto nas escrituras antigas. No entanto, quando ouvem a confirmação de Jesus, pegam em pedras para apedrejá-lo uma vez que consideram uma blasfêmia um homem se intitular Deus?! Mas Jesus replica dizendo:
"Não está escrito na vossa lei: “Eu disse: Sois deuses?” Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida (e a Escritura não pode ser anulada), Àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, vós dizeis: Blasfemas, porque disse: Sou Filho de Deus? Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis. Mas, se as faço, e não credes em mim, crede nas obras; para que conheçais e acrediteis que o Pai está em mim e eu nele." (João, 10: 34 a 38)

Como em outros confrontos com representantes de diferentes seitas judaicas, Jesus faz uma citação de trecho do Velho Testamento, especificamente o versículo 6, capítulo 82 do Livro dos Salmos: “Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo”. Esta passagem é uma crítica explícita aos antigos juízes judeus que de forma maliciosa e interesseira favoreciam em suas sentenças os injustos e com isso oprimiam os pobres e humildes. Na época, tais juízes eram chamados de “deuses” e o salmista faz uma repreensão sobre os maus atos cometidos pelos tais juízes, tanto que no versículo seguinte ao citado é dito: “Contudo, morrereis como simples homens e, como qualquer príncipe, caireis”. Assim, Jesus sabiamente faz um jogo de palavras, em que, por um lado, critica veladamente os judeus que o reprovavam ao compará-los com os “deuses” ou juízes iníquos e ao mesmo tempo justifica sua afirmação dizendo que, se até mesmo homens iníquos podem ser chamados de deuses, que dirá um homem que faz boas obras e prega a palavra de Deus, como é o caso de Jesus, o qual havia acabado de curar um cego de nascença. Assim, o “vós sois deuses”, não é uma referência à nossa essência divina, mas sim um artifício retórico utilizado para rebater as críticas à missão do Mestre.

A segunda passagem do Evangelho de onde foi retirada a sentença: “podereis fazer o que faço e muito mais” pode ser encontrada no capítulo 14 de João:
“Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho”. (João, 14: 12-13)

Aqui sim, Jesus faz uma promessa a seus discípulos de que pela fé ele sempre estaria junto aos seus e pela mesma fé, eles poderiam realizar as obras que Jesus confiou inicialmente aos seus seguidores. É importante ressaltar que naquele momento Jesus se despedia de seus discípulos, dizendo que em breve partiria para o plano espiritual. São os últimos momentos de Jesus, antes da captura e julgamento pelo Sinédrio. Para tanto, Jesus preparava o espírito de seus discípulos infundindo a fé e a confiança necessárias à missão que a partir dali seria desempenhada pelos seguidores de Jesus, sem a presença física do Mestre. Lembremos que, ainda no início do apostolado, os discípulos receberam a seguinte incumbência:
“Por onde andardes, anunciai que o Reino dos Céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. Recebestes de graça, de graça daí” (Mateus, 10: 7-8)

Embora os discípulos tivessem um papel ativo Jesus estava sempre junto deles irradiando bondade e sabedoria, instruindo e principalmente, corrigindo eventuais falhas que porventura os discípulos incorressem, como de fato ocorreu no caso do “endemoniado” que só foi curado pelas mãos de Jesus, pois que exigia “jejum e oração”. Mas com a partida de Jesus, não seria mais possível a intervenção direta do Mestre nas vidas daqueles homens. Assim, em sua sabedoria, Jesus deu uma chave para eles. A chave da fé. Através da fé eles conseguiriam entrar em comunhão com o Mestre em qualquer momento, mesmo nas situações mais difíceis e com isso o poder emanado dos planos superiores se manifestaria no momento de sua evocação. Essa era a nova etapa de aprendizagem dos discípulos.

Portanto, embora não exista a sentença: “Vós sois Deuses e se o quiserdes podereis fazer o que eu faço e muito mais...” há diversas outras passagens encontradas no evangelho que podem assemelhar-se ao sentido destas palavras. Portanto, não desanimemos e voltemos ao ponto central: Realmente nós teríamos uma potência divina? Em outras palavras: Trazemos em nós a centelha divina, a qual pode operar maravilhas?
Para isso voltaremos às palavras do Mestre. Fixemos novamente nossa atenção para situação semelhante à anteriormente citada. Estava Jesus cercado por fariseus, uma das várias seitas da época, os quais lhe indagaram quando viria o Reino de Deus. Jesus respondeu:
O Reino de Deus não virá de um modo ostensivo. Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está dentro de vós” (Lucas, 20: 20-21)
Algumas traduções substituem o “dentro de vós” pelo “no meio de vós”
. Em todo o caso, o sentido é claro: quis Jesus dizer que o Reino de Deus está muito próximo do nosso alcance; está mesmo à nossa vista. Temo-lo tão perto, mas não conseguimos alcançá-lo...

O Mestre vai mais longe e nos ensina como receber a dádiva do Reino de Deus. Aliás, essa foi sua principal missão: ensinar-nos a entrar em comunhão com o nosso criador; transformarmo-nos em santuário onde Deus possa se manifestar. Jesus persistentemente falou sobre isso, de várias formas; através de parábolas, exemplos, exortações. Lembremos da parábola do semeador: “A terra boa semeada é aquele que ouve a palavra e a compreende, e produz fruto...” (Mateus, 13:23). Ou da parábola do grão de mostarda: “O Reino dos Céus é comparado a um grão de mostarda que um homem toma e semeia em seu campo. É esta a menor de todas as sementes, mas, quando cresce, torna-se um arbusto maior que todas as hortaliças, de sorte que os pássaros vêm aninhar-se em seus ramos” (Mateus, 13: 31-32). Poderíamos citar tantas outras passagens, todas apontando para a mesma realidade: deixemos que a palavra de Deus faça morada em nossa alma. A partir daí passaremos a produzir muitos frutos, o maior deles conhecido como o amor-compaixão, aquele que nos faz sentir ligados à toda a criação divina: homens, mulheres, animais, plantas, céus e terra... e ao próprio Criador. Mas também o fruto do amor-ação, também chamado caridade, o qual não se contenta com o sentimento de compaixão, mas busca compartilhar o conhecimento do Reino de Deus, ensinando a palavra de Deus, curando doentes, ressuscitando mortos, expulsando demônios, tal qual Jesus encomendou aos seus primeiros discípulos.

Eis aí o resumo do ensinamento do Mestre da Galiléia: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo: “Nestes dois mandamentos se resumem toda a Lei e todos os Profetas” (Mateus, 22:40).

Sim, o Reino de Deus está dentro de nós. Basta que nos livremos de nosso egoísmo e vaidade, as principais chagas da humanidade, conforme nos lembram os espíritos que orientaram a obra O Evangelho segundo o Espiritismo. Basta que deixemos espaço para que o amor que existe em nós, filhos do Altíssimo, se manifeste. Somente então, tudo o que pedirmos nos será dado, porque conforme nos diz Jesus: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito” (João, 15:7).

Tomemos, apenas, o cuidado de não cairmos na tentação do poder, como no caso de Simão, o mago que havia se convertido ao cristianismo, mas que sucumbiu ao desejo ao ver que os apóstolos transmitiam o “espírito santo” pela imposição de mãos e quis comprar esse poder. Duplo erro: o de achar que as coisas de Deus podem ser compradas e o de acreditar que vaidade e trabalho espiritual podem conviver. Ou se serve a Deus ou a Mamon. Simão preferiu servir a Mamon. Fez sua escolha e toda escolha tem sua conseqüência. Ao aceitarmos o mundo da materialidade, rejeitamos o mundo do espírito. Portanto, não confundamos a palavra do Mestre quando diz que tudo o que quisermos será feito. A busca não é pelo poder: poder-ter, poder-fazer. Mas sim pelo Reino de Deus, pois aí nossa vontade será alinhada com a vontade da espiritualidade superior. Nesse caso, querer significa querer com Cristo, em Cristo, por Cristo.

Transformemos-nos, portanto, em obreiros do Senhor, acolhendo em nossa alma o Reino de Deus. E não temamos nenhum mal ou obstáculos, pois mesmo quando a dificuldade nos assolar, lembraremos dos últimos momentos de Jesus encarnado, despedindo-se de seus discípulos, mas prometendo que sempre estaria presente se tivéssemos a fé necessária, de tal maneira que seríamos capazes de fazer o que ele fazia e muito mais. Mas não é só isso. Jesus prometeu ainda, que Deus nos enviaria o Espírito da Verdade que iria ensinar todas as coisas e recordar tudo o que fora dito por Jesus. Espíritas, rejubilai-vos, pois que nossa geração já foi agraciada com as revelações do Espírito da Verdade, as quais nada mais são que as revelações do espiritismo. O espiritismo veio esclarecer muitos dos ensinamentos do Mestre que até então eram pouco claros; confusos mesmo, sem a devida chave de interpretação. O espiritismo é a chave que tem o poder de fortalecer nossa fé na justiça divina e fazer de nós servos de Deus, amigos de Jesus, médiuns da espiritualidade superior. E assim, ao invés de dizer: “somos deuses e podemos fazer tudo o que Jesus fez e muito mais”, repetiremos as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: “...mas o Pai que permanece em mim, é que realiza as suas próprias obras” (João, 14:10).

9 comentários:

  1. Texto excelente! parabéns

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  2. Magnífica reflexão! Até hoje, o melhor texto que li sobre o assunto, em mais de 20 anos de estudo da Doutrina Espírita.

    Meus abraços cordiais

    Julio Cesar Ameida

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  3. Gostei do estudo, me foi muito útil.

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  4. Muito Bom! esclareceu as minhas dúvidas a respeito do assunto.

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  5. Maravilhoso o texto, muito bem detalhado, interpretado de uma forma ímpar. Parabéns irmão pelo trabalho e pela pesquisa maravilhosa que realizou, me ajudou muito a compreender a passagem bíblica. Obrigado!

    Abraço fraterno,

    Frederico Granadeiro

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  6. Pensei que fosse reflexão católica pois penso idêntico.Nós somos a imagem e semelhança de Deus.Os Santos e seus prodígios nos provam isso.Abraço em Jesus e Maria

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  7. RUBENS GOMES DE ARAUJO5 de janeiro de 2019 às 12:24

    Caro Alexandre, seu texto nos foi muito esclarecedor, embora seguidor da doutrina, não tinha uma visão tão apurada quanto a sua sobre o assunto. Muito obrigado pelo excelente artigo

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