sábado, 25 de março de 2017

Uma visão sobre paternidade



 Autor Thiago D. Trindade


O pai, nos dias de hoje, é uma figura muito questionada, por mais incrível que possa parecer. Antigamente, a figura do pai era a do senhor absoluto do lar, um tirano, cuja figura distante e austera que mais intimidava do que inspirava respeito e confiança. Nosso bom amigo André Luiz, na obra “Nosso Lar” (psicografia de F.C. Xavier, editora FEB, 1997, 46° edição, 281 páginas) admitiu ter sido um pai assim.

Nos últimos anos, porém, cultivou-se a imagem do pai-irmão do próprio filho. Ao termo pai-irmão, não nos referimos à consideração de todos sermos filhos de Deus, logo, irmão. Nossa referência é o caráter hierárquico estabelecido pela maturidade e experiência. A figura do pai-irmão tem sido muito valorizada pelas mídias, onde o genitor e prole chegam a abolir os termos “pai e filho”, numa ruptura de estrutura familiar. Como resultado, vemos homens, mulheres e crianças sem o menor respeito aos membros da própria família e a terceiros.

O terceiro tipo de pai é o chamado pai-ausente, muito comum pelo mundo à fora. A figura do pai-ausente não pode ser somente compreendida como a ausência física do genitor. Existem pais que residem com seus filhos, mas por várias razões superficiais, são alheios ao pequeno universo em construção que sua criança é.

A Doutrina Espírita, o Consolador Prometido, orienta a respeito da responsabilidade da figura do pai. A respeito do pai e da mãe, na questão 208 do Livro dos Espíritos, aprendemos que os pais tem a tarefa de desenvolver os filhos pela Educação. Os pais são responsáveis pela educação moral e intelectual de sua prole. E por que “moral e intelectual”? É a evolução moral que nos aproxima da Perfeição. A intelectualidade nos mostra novos horizontes.

Para ilustrar, temos Chico Xavier, de pouca instrução intelectual – pouco estudo formal –porém de maciço teor moral, e, do outro lado Josef Mengele, médico nazista, de profundo estofo intelectual, mas de moralidade quase nula.

Na questão 582 do mesmo livro, observamos a imensa responsabilidade e do compromisso do pai e da mãe em criar condições a um Espírito se desenvolver moralmente. Avalia-se, nas questões subsequentes, a extensão das consequências para eventuais fracassos.

No Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo 14, Santo Agostinho afirma categoricamente que são os pais, os responsáveis pela condução dos filhos ao caminho reto. Ratifica, o ilustre mentor, que a educação verdadeira é obtida pela exemplificação.

Nessas duas obras, o Livro do Espíritos e o Evangelho Segundo o Espiritismo, vemos que o fracasso dos pais em orientar os filhos resulta em pesados débitos. No caso de nosso amigo André Luiz, que há décadas trabalha incansavelmente no Bem, ainda há de resgatar sua dívida contraída por conta de sua tirania doméstica de sua encarnação pretérita. É a Lei da Ação e reação.

Na magistral obra “Memórias de um Suicida” (autor espiritual Camilo Castelo Branco, psicografia de Yvonne do Amaral Pereira, editora FEB, 1998, 20° edição, 568 páginas), conhecemos o espírito Jerônimo, que fora comerciante português. Um pai ausente e um homem desonesto. Assoberbado por dívidas, optou pelo suicídio – tema este para outra reflexão. Jerônimo permaneceu anos no Vale dos Suicidas até ser resgatado pela Legião dos Servos de Maria. Espírito rebelde, o antigo comerciante, insiste em rever a família e, ao reencontrá-la, quase enlouqueceu. A esposa, prostituída, explorava a própria filha caçula, igualmente lançada ao meretrício. Esta jovem, a jóia que rebrilhava aos olhos do homem, então encarnado. O filho varão, jazia preso em uma cela desumana. Confrontado com a dura realidade, o fracasso de sua missão como pai, Jerônimo acabou sendo levado para recuperar-se em outro setor do Hospital Maria de Nazaré. Fracassara, o pobre espírito, como indivíduo e como integrante da base de um grupo. Pelos relatos obtidos na obra, Jerônimo veio a reencarnar anos depois, podendo ser qualquer um de nós.

Em todos os casos apresentados, os filhos resultam dolorosamente em seres incapazes de se ajustarem, compreendendo a si mesmo ou ao próximo. Os jornais, aliás, estão recheados de crimes que tem origem na ruína familiar.

A falta de Deus no lar.

A falta de um pai para trazer Deus, junto com a mãe, ao lar!

O pai, como nos ensinam os Bons Espíritos, é uma figura fundamental na Evolução Humana e deve reconhecer em si a responsabilidade que ele próprio pediu à Sabedoria Divina. Saber que sua postura de tutor, e porque não considerar-se também modesto aprendiz de seu filho transitório, deve ser firme, serena, racional e doce, como Jesus nos ensinou a ser. Ser um companheiro de seu filho sem ir contra a estrutura familiar que nossa sociedade enferma está nos impondo. O pai deve reconhecer suas imperfeições e se esforçar em vencê-las, como está claro no capítulo 17 Evangelho Segundo o Espiritismo, “Sejam Perfeitos”.

Ser pai é uma excelente prova de formação moral.

Ser pai significa ser um exemplo de Humildade, Paciência, Perseverança, Resignação e Fé.

Ser pai significa amar muito além das convenções da consanguinidade e da sociedade transitórias.

O amor do pai é o amor sublime que não vê barreiras para brilhar e afastar a escuridão da ignorância.

O maior exemplo de pai, é o carpinteiro José, pai de Jesus. Um homem pobre na matéria, mas de vulto moral imenso.

Que Fé gigantesca ele tinha, que sabendo de sua responsabilidade perante o mundo, enfrentou grandes perigos para que o Excelso Mestre viesse encarnar.

Que fibra tinha o carpinteiro em atravessar as estradas palestinas, guiando um velho jumento e protegendo uma frágil e assustada grávida pelas noites gélidas do canto mais pobre do Império Romano.

Certamente seu coração sangrava ao ver sua amada esposa passar necessidades e quantas vezes seus olhos insones varriam os campos desolados procurando bandidos ou perseguidores?

Quando Jesus nasceu, José sabia que Ele era a Boa Nova, não deu por encerrada sua missão por encerrada. Havia protegido Jesus e agora era hora de contribuir de outra forma: a formação Moral e Intelectual.

Embora Jesus fosse o Espírito mais evoluído a pisar na Terra, o Mestre Galileu precisava passar por tudo aquilo e era necessário para ser realmente um homem de sua época. Não havia concessões para o Cristo e José sabia disso. Em nenhum momento o velho carpinteiro procurou abrandar a Missão de Jesus. José, junto com Maria, foi a base – a estrutura Moral e Intelectual – para o Cristo de Deus.

Ensinaram” a Jesus a respeitar o próximo.

Ensinaram” Jesus a orar.

José “ensinou” um trabalho para Jesus, para honrar a comida à mesa.

José “ensinou” Jesus a ser um homem de Bem.

Todos nós, neste mundo de prova e expiações somos um pouco parecidos com o carpinteiro José. Com um cajado nas mãos, puxando um jumento com uma preciosa carga, procurando um proteger nossa família.

Como José, o Perseverante, seguramos nossas lágrimas para transmitir confiança à nossa frágil e assustada Maria, enquanto procuramos um lugar seguro onde nascerá o nosso Jesus.

Somos José, possuidor de uma Fé monumental, que fitava o céu não para pedir a Deus para abrandar a carga de nosso filho, mas sim pedindo que nosso tutelado tenha lucidez para vencer seus desafios da melhor forma possível.

Lembremos mais do carpinteiro José.

Que seja como José, aquele que é pai separado.

Que seja como José, aquele que é padrasto.

Que seja como José, aquele que tem de se “fundir” com a figura da mãe, o chamado “pãe”, uma tarefa árdua, mas de doce recompensa.

Que seja como José, aquele pai que por anos foi pai-tirano, pai-irmão ou pai-ausente, diminuindo seu débito ainda nesta encarnação.

Que seja como José, aquele homem que se deparar com uma criança desvalida, sendo PAI dela.







sábado, 18 de março de 2017

Degustação de obra (O Lavrador) - Livro Contos de Redenção, médium Thiago D. Trindade



O lavrador


“O Reino dos Céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai vende tudo que tem e compra aquele campo.” Mateus 13: 40





O sol estava escaldante. O suor escorria por seu rosto marcado que teimava manter-se altivo. Um meio sorriso estava estampado em sua boca ressequida e seus olhos se voltavam para a terra seca que suas mãos teimavam em lavrar. Assim Josué seguia, dia após dia.

Naquela ocasião, porém, foi diferente. Um rapaz, guiando um grande carro importado, veio levantando uma grossa cortina de poeira que se erguia na direção do infinito. O motorista era o filho de um rico fazendeiro. Dirigindo de forma perigosa, Evandro bateu com o pneu do jipe em um buraco, fazendo-o estourar. Proferindo palavrões, o jovem saiu do ar refrigerado do automóvel e sentiu a força do sol em seu rosto pálido. Os óculos escuros pareciam impotentes ante à luz do astro rei.

De forma inexplicável, os olhos de Evandro pousaram na figura do velho Josué, que trabalhava a terra alheio a confusão do jovem.
- Ei velho! Gritou o jovem, de forma arrogante.

Lentamente Josué ergueu a cabeça. Sua audição já não era a mesma e parecia que tinha ouvido, ao longe, alguém falando. Divisou o jovem de roupas extravagantes gesticulando para ele. Ajeitando o chapéu no alta da cabeça manchada pelo sol, Josué deu um sorriso desprovido de dentes e acenou para o rapaz. Com passos largos, o lavrador chegou até o impertinente Evandro.
- Sou filho do senhor Luciano – disse o rapaz, arrogante – eu preciso que você troque o pneu do meu carro.
- Troco sim, moço – respondeu o velho – eu posso ajudar você, pela graça de Deus.

Com alguma dificuldade, Josué trocou o pneu. Evandro, porém, praguejava contra a lentidão do velho. O trabalho, por fim, foi feito. Retirando algumas notas do bolso, o jovem as estendeu para o idoso.
-Não posso aceitar, moço – retrucou o lavrador, balançando a cabeça com firmeza – não se cobra por ajudar alguém em precisão. Eu sei que se o moço estivesse bem, poderia ter trocado a roda sozinho.

Evandro amassou as notas. Sentia-se ultrajado. Como aquele velho miserável ousava recusar seu dinheiro e ainda chamá-lo de necessitado?
- Velho – resmungou o filho do fazendeiro – o sol fritou seus miolos. Estou lhe pagando por um serviço.
- Não se cobra pelo serviço de ajudar um filho de Deus – asseverou o outro – eu é que agradeço.

Evandro gargalhou. Definitivamente o ancião era louco.
- Está certo então, velhinho – disse o rapaz – vou embora. Fique nesse seu deserto, comendo pedras e poeira. Imagino que não saberia o que fazer com esse dinheiro.

Josué sorriu. Estendeu a mão duras e magra para o jovem. Evandro a tomou. Sentiu a força que ainda restava no velho.
- O que te sustenta, filho? Indagou o ancião.
- O quê? Devolveu Evandro, surpreso.
- O que faz você caminhar? Insistiu Josué.

Evandro não sabia o que responder. Que perguntas eram aquelas? Era seu pai quem o sustentava. Era Luciano quem sustentava todo seu modo de vida.
- Quem é você, velho, para se meter na minha vida? Disparou Evandro, num rompante.
- Ninguém – respondeu o velho baixando a cabeça – só gostaria de saber quem você é.
- Já não disse quem é meu pai?! Esbravejou o rapaz.
- Mas não disse quem você é – insistiu o lavrador – veja, eu sou Josué. Eu lavro a terra. Bendigo a Deus pelo meu trabalho e a riqueza que possuo.
- Riqueza?! – gargalhou Evandro – um campo seco?
- O que vê são pequenices, filho – asseverou Josué, com simplicidade – eu almejo uma grande riqueza. Para consegui-la, tenho de empregar os bens que Deus me emprestou...
- Você está gagá mesmo! Riu o outro.

Josué sorriu. Seus olhos, esbranquiçados pela catarata, se dirigiram para o carro de Evandro. O moço percebeu e alisou o capô do automóvel.
- Esse é um patrimônio, amigo – disse Evandro – meu carro é um bem que satisfaz. Isso é riqueza!
- Certo moço – continuou o outro – mas é uma riqueza pequena. Tudo o que nós pegamos, que nós vemos até, é pequeno! O verdadeiro tesouro nós sentimos!
- Balela! Negou o jovem.
- Tudo o que nos faz caminhar par a Verdade é justamente a vontade de amealhar a riqueza do sentimento nobre. E quem não é a Verdade senão Deus?
- Conversa de carola, vovô... Provocou o jovem rico.
- Conversar é pouco também – prosseguiu Josué animado – é necessário pegar na enxada e trabalhar na terra bruta. Encarar a terra teimosa. É um serviço que muitos pensam ser ingrato. Mas com paciência e carinho a terra se torna o berço de uma linda árvore que renderá doces frutos.
- Você acredita mesmo que vai tirar alguma coisa dessa terra esturricada? Indagou Evandro fitando o deserto.
- Acredito piamente nisso. – respondeu Josué com doçura quase palpável – a fé de meu coração me dá força para lavrar a terra seca.

Evandro contemplou o campo árido. Nuvens de poeira se levantavam. Sentiu pena do velho.
- Vovô, posso lhe arranjar um trabalho na fazenda do meu pai – o rapaz deu um meio sorriso – irá trabalhar menos e comer melhor com o salário que vai receber.
- Não obrigado – sorriu Josué, e aquele sorriso pareceu a Evandro estranhamente familiar – tenho meu torrão para lavrar.

O jovem fitou o idoso. Definitivamente, o agricultor era louco. Evandro entrou no carro.
- Gostaria que fizesse uma coisa por mim, moço. Disse o velho.
- O quê? Respondeu o rapaz com as mãos do volante.
- Ao se deitar, faça uma prece. Sentenciou Josué.

Evandro meneou a cabeça e ligou o motor. Ao chegar em casa, que encimava uma grande colina, viu seu pai, o poderoso fazendeiro Luciano, observando maliciosamente a filha da cozinheira.
- Tenho uma boa história pai. – disse Evandro caindo pesadamente no sofá – o pneu estou...

O rapaz narrou todo o acontecido. Luciano, coçando a grande barriga, riu ante a caracterização que ouvira do velho lavrador. Como o filho, o fazendeiro acreditou que o sol fritara os miolos do idoso. Mais tarde, ao dormir, após ingerir algumas cervejas e cigarros, Evandro olhou para o teto do aposento. Lembrou-se do pedido de Josué. Xingando o velho agricultor, Evandro sentou-se na cama opulenta.
- Tanta coisa para me pedir e ele me pede pra rezar?! Exclamou o rapaz, bufando.
- O que faz você caminhar? Subitamente essa pergunta voltou à mente de Evandro.

Baixando tão somente a cabeça desgrenhada, o filho do fazendeiro lembrou-se do velho e de uma imagem de Jesus que vira certa vez.
- Deus, me ajude! Exclamou o jovem.

No dia seguinte, Evandro entrou no carro e foi veloz para onde havia encontrado com o velho lavrador. Encontrou-o lá, do mesmo jeito que no dia anterior. Josué, ao vê-lo, levantou-se e acenou com o chapéu.
- É bom vê-lo. Disse o idoso.
- Velho, tive um sonho esquisito! – disparou Evandro – meu cérebro fritou ontem. Só pode ser!
- O que foi, moço? Indagou Josué, pondo o chapéu velho na cabeça manchada pelo sol.
- Não tive meus sonhos de hábito. – respondeu o outro – não sonhei com mulheres... ou ainda o sono sem sonhos...
- O que o senhor viu? Insistiu o lavrador.
- Esse lugar estava cheio de flores – prosseguiu o rapaz – árvores altas!
- Então o senhor compartilhou comigo o meu sonho – Josué abriu sua boca murcha e desprovida de dentes, num sorriso largo e estranhamente cheio de vida – minha esperança!

Evandro coçou a cabeça. Aquilo era estranho demais.
- Falou com seu pai do carro quebrado? Perguntou o velho fitando o possante veículo.
- Sim. – respondeu Evandro balançando a cabeça – ele riu.
- Quem não riria de pequenices assim, não é? Suspirou o ancião.
- Velho, sonhos são devaneios – anunciou Evandro, com fervor – só isso. Nada sobrevive a essa secura!
- Venha comigo. Disse Josué prontamente.

O lavrador guiou Evandro por entre touceiras secas de espinheiro. Chegaram a um local junto a um morro baixo. Ali havia um jovem cajueiro.
- Meu trabalho está rendendo e vemos a recompensa! – exclamou o velho – o senhor verá esse campo verde!
- Venha comigo para a fazenda. Disse Evandro, após observar lentamente para a vigorosa muda.
- Não obrigado. – respondeu Josué – irei lavrar essa terra. O senhor pode me ajudar.

Aquilo era absurdo para Evandro. Jamais ele pegara numa enxada ou qualquer ferramenta. No entanto, o jovem segurou a gasta companheira do agricultor.
- Ponha a lâmina da enxada na terra e imagine que você dá a ela a força que faz brotar as plantas. Tenha fé de que está recuperando essa terra para o serviço de Deus. Ensinou Josué com ar professoral.

Desajeitado, Evandro revolveu o solo. Era difícil fazer aquilo. As mãos logo doeram. As costas reclamaram e seu rosto ardeu com o sol implacável e o suor encharcou suas belas vestes.
- Chega. Disse Evandro com o corpo rígido e dolorido, com as mãos entorpecidas e prestes a serem tomadas por bolhas doloridas.
- O senhor lavrou a terra, moço. – disse Josué com ar satisfeito – caminhou. Deu esperança a essa terra.

Coberto de poeira, Evandro percebeu que sorria. O trecho que capinara era muito curto, mas fora o que fizera. Os olhos dos dois homens se encontraram.

De volta ao lar, Luciano estranhou a aparência do filho. Observando as mãos feridas de Evandro, o fazendeiro exasperou-se.
- Espero que a mulher tenha valido à pena. Resmungou Luciano.

Evandro fitou o pai. Por um momento viu no pai o que ele mesmo era. Incomodado com essa constatação, banhou-se e foi ao seu quarto. Sentia-se só, como nunca antes. Ainda parecia que o peso da enxada estava em suas mãos. O sol também era percebido pela sua pele queimada. Ao fechar os olhos, viu os campos do lavrador cheios de vida.

Adormeceu. Novamente, os campos do estranho agricultor estavam lá, porém estavam ainda mais repletos de vida do que antes.

Sobressaltado, Evandro despertou. Sentia o perfume do sonho, mas uma sensação de imperiosidade o incomodava. A imagem do velho não lhe saía da cabeça. Trocou de roupa e saiu, pouco antes dos galos anunciarem o raiar do dia. Nos primeiros raios de luz, o jovem chegou ao lugar onde havia encontrado com o lavrador pela primeira vez. Sabia que o velho chegava ao amanhecer. O sol chegou abrasador e nenhum sinal do agricultor. O coração batia descompassadamente no peito de Evandro, que, num rompante entrou no carro e saiu pelos campos. Iria encontrar o velho.

O carro jogou poeira para o céu por longo tempo, até que finalmente, quando o combustível estava prestes a acabar, Evandro divisou uma pequena casa de sapê. Era um casebre paupérrimo.
- Só pode ser ali! Gritou o rapaz.

Encostou o carro e irrompeu casa à dentro. Havia somente um cômodo na tapera. Josué estava deitado na cama de tábuas. Ao seu lado, seu chapéu e a enxada. O ancião abriu lentamente os olhos. Evidenciava uma respiração lenta e fraca.
- Você está doente? Indagou o rapaz se abaixo ao lado de Josué.
- Estou indo conferir a riqueza que tenho, moço. Respondeu o lavrador com um sorriso banguela.
- Não! Exclamou Evandro sentindo lágrimas brotarem em seus olhos.
- Como não? – retrucou o outro, ainda sorrindo – a morte é tão natural quanto o nascer do sol. Faz parte da vida, mocinho.

O corpo de Evandro tremia. Jamais se apegara a alguém antes. Parecia ao jovem que deveria ter aproveitado mais o tempo com aquele amigo que arranjara pela graça do destino e que agora se ia.
- Vivi muito, filho – disse Josué – é hora de conhecer outros campos. Gostei muito de conhecê-lo moço.
- Há alguém a quem chamar? Indagou Evandro às lágrimas.
- Minha esposa me aguarda e meus filhos mais velhos também. – respondeu o velho – o caçula ainda não está pronto...
- Irei buscá-lo! – bradou o rapaz – ele deve se despedir do pai!

- Para ele estou morto. – suspirou Josué – morto na carne e no espírito. Para mim ele ainda precisa de cuidado, o mesmo que devemos ter para com a terra. Deixe-o onde está.
- Nem sei o seu nome, mas gostaria que fosse meu avô. Disse Evandro beijando as mãos rijas e descarnadas do ancião.
- Meu nome é Josué Ambrósio. Respondeu o lavrador.

Evandro estacou. Aquele era o nome de seu finado avô, que morrera quando Luciano era pouco mais do que um menino. O velho morrera após a esposa, Luzia e os filhos mais velhos. Dois rapazes e uma moça. Fitando cuidadosamente o rosto marcado do lavrador, o rapaz encontrou similaridades com a face dura de Luciano.
- Você é meu avô! Exclamou Evandro.
- Então o ciclo se fecha. – sorriu Josué – bendito seja Deus! Senti um grande carinho por você, assim que o vi! Meu neto...
- Por quê? Volveu Evandro.
- Sem perguntas, meu neto. Retrucou Josué com a voz ainda mais fraca.

Os dois homens se olharam e sentiam um imenso júbilo dentro de seus corações.
- Ontem você lavrou o solo com afinco, meu neto. – disse Josué pondo o dedo ossudo no peito de Evandro – é hora de você lavrar seu coração. É você quem irá deixar os campos que Deus emprestou verdejantes!

Dizendo aquilo, Josué sorriu e morreu. Evandro não ficou desesperado, pois uma sensação de paz o tomou. Beijou a testa fria do avô recém encontrado e pegou a enxada que agora lhe pertencia. Cavou a cova de Josué próxima a casa de sapê e por fim, pôs uma simples cruz. Não sabia o que acontecera na família, mas isso não importava. Não odiava o pai, a quem amava.

De volta à casa, Evandro encontrou seu pai furioso. O velho fazendeiro bebia sôfregamente uma dose de pinga quando o rapaz entrou pela sala carregando a enxada.
- Agora traz as ferramentas dos empregados?! – rugiu Luciano – vou sumir com esse velho que está a lhe enfiar coisas idiotas em sua cabeça!
- O nome do velho era Josué Ambrósio, pai. – disparou Evandro – ele morreu hoje. Ele lhe amava muito e tinha esperança em você!

Luciano, estarrecido, deixou o copo cair no chão. Os olhos do fazendeiro se encheram de lágrimas, mas nenhuma delas rolou. Em silêncio, o filho de Josué foi até seu quarto e lá permaneceu.

Sentado na cozinha e com a enxada deitada sobre suas pernas, Evandro permaneceu até o dia seguinte. Sua cabeça girava, entorpecida, quando o peso da mão de Luciano o despertou definitivamente.
- Leve-me até onde meu pai está. – disse o fazendeiro com a voz embargada – por favor.

No carro de Luciano, pai e filho foram até onde se encontrava o casebre de Josué. Pesadamente, Luciano caiu de joelhos ante o túmulo do pai. Finalmente, lágrimas rolaram pelo rosto do implacável fazendeiro, molhando o esturricado solo que Josué tanto amara. Pedindo perdão, Luciano estava com o espírito alquebrado.

Os dias correram, por fim, e Luciano não mais se dedicava aos negócios. Caminhava pela enorme casa sem direção. Evandro também se sentia vazio. Às vezes voltava para os campos onde conhecera o avô e usava a velha enxada para arrancar as ervas daninhas que ameaçavam as mudinhas esquálidas que Josué plantara.

Certa vez, Evandro, sentado em sua cama, teve uma idéia. Com muita cautela, foi até seu pai, com quem não mais falara desde o reconhecimento do velho lavrador com avô e pai deles.
- Quer ir comigo ao campo do vô Josué? Perguntou Evandro com uma pontada de esperança.

Com um estremecimento Luciano recebeu o convite. O fazendeiro, após um tempo de hesitação, aceitou. Dentro do automóvel era apenas silêncio e ansiedade. Levavam sementes, mudas e adubos.

Chegando lá, Luciano não quis sair do carro. Em silêncio, Evandro pegou as ferramentas e insumos e começou a trabalhar.
- Mamãe morreu de tuberculose – disse Luciano, com a voz ofegante – papai sentira muito a perda dela. Talvez mais do que todos nós juntos. Getúlio, o mais velho, ficou à frente dos negócios das cabras, já que era o único meio de se conseguir dinheiro. Não tínhamos recursos alguma para plantar ou criar algo que não fosse palma e cabra. Mas Getúlio era péssimo administrador e criou dívidas enormes.- com um suspiro o fazendeiro ergueu seus olhos avermelhados para o céu azul – era ele o mais velho e tínhamos que segui-lo, e mesmo que ele gastasse toda a mixaria que as cabras rendiam no cabaré, devíamos baixar a cabeça para ele.

Evandro, sem parar de carpir o solo, apenas ouvia.
- Papai nada fez. – continuou o fazendeiro – acho que ele estava tão absorto pela morte da mamãe que ele simplesmente não sabia o que se passava. Otávio, mais velho do que eu, se rebelou contra Getúlio e eu o segui. Maura, pouco mais nova que Otávio se alinhara com Getúlio. – os olhos do filho de Josué se voltaram para as mãos fechadas, que tremiam violentamente – houve luta. Getúlio era forte. Muito forte. Quebrou o nariz de Otávio com um único soco e me arremessou para longe. Getúlio começou a chutar Otávio e eu corri para pegar a arma de papai. Quando eu apontei o revólver para meu irmão mais velho pedi que ele fosse embora. Getúlio apenas riu! Eu tinha apenas treze anos. Ele me xingou. Disse que iria me surrar até ficar aleijado – o rosto de Luciano ficou pétreo e Evandro, que tinha parado de capinar, fechou os olhos – eu atirei. A bala atravessou Getúlio e pegou a Maura. Otávio gritava muito. Ele tirou a arma de minha mão e correu para ver se Getúlio e Maura estavam vivos. Quando Otávio se aproximou, Getúlio o surpreendeu e o desarmou. Deu um tiro na cabeça do irmão achando que era eu! Quando papai chegou da casa da tia Zuleica encontrou os filhos mortos e eu sentado no chão da sala. Ele olhou para mim. Aqueles olhos! Ele soube o que acontecera! Papai pegou a arma e enterrou os filhos no quintal junto de mamãe. Não me disse uma única palavra. Apenas me beijou na testa e desapareceu nos campos ermos. Tia Zuleica veio e disse que ia cuidar de mim. Ela falou que a polícia procurava o papai pelo crime acontecido. Eu cresci e tornei-me o que sou hoje. Um traste!
- Você é meu pai! – exclamou Evandro – amo você!

Luciano fitou o filho. Desde que Eleonora morrera, no acidente de carro, jamais sorrira. O fazendeiro abriu a porta do automóvel e fitou os campos secos. A passos largos chegou até o filho e lhe tomou a enxada.
- Você está fazendo errado. – resmungou Luciano – vou mostrar como se lavra a terra, meu filho.









As provas mais difíceis são aquelas que afetam o coração. Existem aqueles que suportam com coragem a miséria e as privações materiais, mas abatêm-se ao peso das amarguras domésticas, atormentados pela ingratidão dos seus. Que angústia terrível! Nesses casos, mais que o conhecimento das causas do mal, a certeza de que não existem sofrimentos eternos é que ajuda a reerguer a coragem moral, porque Deus não quer que Sua criatura sofra para sempre.


Fragmento retirado do Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo XIV,A ingratidão dos filhos e os laços de família. Santo Agostinho. Paris, 1862. Item 9.


































Essa obra é comercializada em prol do Asilo para idosas e Creche Seara de Luz, em Paracambi-RJ e pode ser adquirida em https://www.mythoseditora.com.br/catalogo/default.asp?acao=detalhe_produto&cod_produto=4085&categ0=&categ1=&categ2= 















segunda-feira, 13 de março de 2017

Os novos Fariseus



Autor Thiago D. Trindade



Estas personalidades estão espalhadas em todas as Religiões. Chamamos de Fariseus pela forma de agir que adotam, ou seja, conhecem profundamente os Ensinos do Mestre Galileu, mas não se dignam a praticá-los. Alguns chegam, deliberadamente, a retirar Ensinos que poderiam colocá-los em posição incômoda, ou então subvertem a Mensagem em benefício próprio.

Na Doutrina Espírita, direcionando assim essa Reflexão, embora possamos “usá-la” para qualquer crença, não é diferente. Vemos tenazes oradores, mestres em Dialética, inflamando platéias com sua verborragia magnífica. Cobram dos outros gestos e posturas que se autoisentam. Ah, e julgam! Como julgam, com dedos erguidos tal como aguilhões venenosos. Línguas ferinas dardejam contra aqueles a quem creditam ter moral fraca, mais ainda aqueles que possuem outra crença Religiosa. E ocorre que nas explanações, que deveriam ser Doutrinárias, descambam para ataques contra Católicos, Protestantes, Umbandistas, Candomblecistas, além de seus próprios companheiros de Doutrina Espírita. Esses Neofariseus tomam para si a Verdade sem perceberem que a Verdade tem muitas faces para ser melhor compreendida, em nome de Deus.

Tal como os Fariseus dos templos bíblicos, os Neofariseus expulsam, criticam e ofendem seus irmãos. Abraçam cada vez mais o formalismo, a erudição, esquecendo-se da simplicidade de simplesmente Amar.

Chegam ao cúmulo de desconsiderarem aqueles de pouca instrução Doutrinária, mas de intenso trabalho caritativo e valor Moral, pelo fato de não saberem de “cor e salteado” a pontuação das Obras Básicas trazidas à luz terrena pelas mãos do professor Allan Kardec.

O que esses Novos Fariseus, e suas casas frias, com seus olhares presunçosos e mente endurecida, na verdade, fazem um desserviço ao Cristo, retardando o crescimento próprio, e por conseqüência do Planeta.


É hora de despirmos a toga da arrogância e saiamos dos templos escurecidos pela falta de Reflexão e Humildade. Abracemos a todos, sem distinção. Expulsemos de nosso Templo Interior os Fariseus que lá habitam e tornemo-nos, de fato, Cristãos.








quinta-feira, 9 de março de 2017

Por vir




Autor Thiago D. Trindade


Por vir



Paulo, em sua carta aos Romanos (8:18) nos fala diretamente sobre Esperança e Objetivo. Nos inspira a vencer nossas más tendências, transitórias ante a Imortalidade do Espírito.

Referenciando a Glória que nos está reservada – a Perfeição – o Apóstolo dos Gentios afirma que esta ainda será revelada a nós. Revelada, sim, desde que nos comprometamos verdadeiramente com a inexorável Lei do Amor.

No fragmento 8:8 da mesma carta, o antigo perseguidor de Cristãos é taxativo:
“Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus.”

Com essa frase dura, direta e precisa, Paulo se refere à carne como as coisas mundanas de baixo teor moral. Não seria melhor o termo “mundano” somente? Não. Existem coisas mundanas que nós precisamos e que cumpridas com Sobriedade nos são benéficas moralmente. Um exemplo: o sexo bem compreendido.

O tempo presente a que Paulo se refere é o nosso momento em que, conscientes de quem somos, e quais virtudes e defeitos possuímos, nos propomos a alcançar o Alto, de acordo com nosso empenho em nos modificarmos interiormente.

O glorioso “por vir” citado por Paulo não pode ser mensurado por nós. Nem mesmo ele fazia idéia disso, mas seu sentimento para o que estava além de sua limitada compreensão era tão grande que talvez o Apóstolo fosse o único de sua época, na Terra, a chegar perto de compreender melhor o que significava “o Reino dos Céus”. Prova disso é que percebemos em suas cartas, que sobreviveram aos séculos de manipulações, mas que mantiveram o cerne da Grande Mensagem de Amor inalterada, e também pelo impacto de sua própria transformação espiritual.

Era a certeza do “por vir” da Bem Aventurança que dava a Paulo a força necessária para se esforçar em vencer as suas próprias más tendências, e mais, inspirar nos outros o crescimento da luz do Cristo em seus corações.

O “por vir” de Paulo, para ele mesmo, chegou mais cedo e desde então ao Apóstolo da Caridade vêm trabalhando incessantemente junto a nós, com a Luz de Mestre Jesus a iluminar seus passos.

O “por vir” citado por Paulo nos leva a transformação da semente dura, seca e opaca em uma bela e frondosa árvore, sempre orvalhada e repleta de flores e frutos, capaz de alimentar os famintos da Alma, levando-os ao refazimento junto ao Cristo e assim, ao tão falado Reino dos Céus.











quinta-feira, 2 de março de 2017

Um simples gesto de Amor



Autor Thiago D. Trindade



O Amor é a base de toda a Doutrina de Jesus. Uma pequena palavra, com 4 letras reunidas, mas que tem profundo significado. Algumas vezes essa palavra é usada atos menos nobres, é bem verdade. No capítulo 12 do Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado Amem seus inimigos, a Espiritualidade, coordenada por Jesus, explica que não devemos direcionar sentimentos baixos a nossos irmãos com quem temos desavenças momentâneas, sejam encarnados ou não.

Devemos, na verdade, endereçar, pela força do pensamento e por gestos, vibrações de apaziguamento. Não devemos direcionar vibrações de animosidade, ódio, rancor, vingança, etc. esta, de fato, é a primeira Caridade que é feita com o pretenso inimigo. Um gesto de Amor fraternal!

Paulo de Tarso afirma que ainda que falasse a língua do Anjos, se não tivesse Amor, nada seria, conforme vemos em sua espetacular Carta aos Coríntios. Zaqueu, por sua vez, olhava sua Casa de Auxílio em chamas, certo que sua persistência na mansidão, somada ao contínuo trabalho de Amor iria vencer a ignorância dos que destruíam sua obra material e que contribuíam para o brilho da obra espiritual do antigo publicano.

Nós já fomos apedrejados com toda a sorte de ofensas. Mas também apedrejamos, não é?! Tenhamos em mente que todos os problemas que temos são em decorrência de nossas más ações nesta ou em outra vida.

É hora de quebrarmos esse ciclo de tristeza, de acusação e de rancor.

Temos que aprender a Amar. Amar é Perdoar incontáveis vezes. Amar é ser Paciente. Amar é entender que muitas vezes nosso irmão ainda não tem a Luz do Evangelho dentro de si, nos cabendo a missão de semear as Luzes do Cristo por toda a nossa volta através do exemplo e do estudo sério.
Não é algo fácil, mas precisamos fazer, se queremos, de fato, nos livrar dos problemas, de nossas dores morais.

Amar sempre! Assevera Emmanuel, com seu vigor característico, sempre que Chico, era espancado por toda sorte de ofensas.

Amar sempre, praticou André Luis quando encontrou seu próprio pai nas regiões umbralinas, em puro sofrimento e rancor, conseguindo, com a ajuda de sua mãe, por fim ajudar o homem que em vida fora um tirano.

O Amor vence tudo. Dá força a uma mãe visitar o filho em uma tenebrosa prisão.

O Amor Verdadeiro ilumina as estradas mais escuras da existência humana.

Não Amou verdadeiramente Francisco de Assis? Tereza de Calcutá não Amou?

Eles não eram diferentes de nós quando resolveram tomar o Caminho do Cristo. Se são diferentes de nós agora, ou seja, mais evoluídos moralmente, é porque se comprometeram verdadeiramente com o Cristo e venceram.

Essa nossa conversa sobre Amor, que serve para todos nós, é para nos estimular a deixar de procurar culpados e procurar, de fato, evoluir.

Eis uma receita:
Vitamina de Amor:
1 cumbuca de Paciência,
1 colher de Perseverança,
3 xícaras de Humildade,
1 pitada generosa de Bom Humor,
3 litros de Fé,
1 colher de Resignação,
1 colher grande de Estudo,
2 colheres de Trabalho

Misture tudo e faça a ingestão na Alma diversas vezes ao dia.