sábado, 2 de novembro de 2013

A tempestade



autor Thiago D. Trindade

“Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam os muros, a fim de os roubar. Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem não corroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam.” Mateus 6:19-20





Perdera tudo. Seus bens, outrora inúmeros, tinham se ido em meio aos excessos da carne. Sua família, que antes não fora prioridade, também se fora, arrancada da vida pelo terrível acidente que poupara o homem arruinado. Apagado, o homem observava com olhos semi-mortos as revoltosas ondas que se arrebentavam no cais de madeira onde se encontrava. O céu de chumbo era um reflexo da alma torturada daquele homem comum, sem nome.

Em sua desgraça, não percebia que estava encharcado até os ossos e suas vestes, de fina confecção, estavam esfarrapadas. Os cabelos grisalhos que resistiram aos anos e ao tormento de sua existência, escoiceavam ante a fúria dos ventos em tempestade que vinha pelo mar.
- Que o mar me trague. Desabafou o homem vencido, cheio de desprezo e desafio.
- Por que, tio? Indagou uma voz infantil.

Ao se virar, o atormentado se deparou com um menino moreno e de grandes olhos negros, que sorria. O garoto se colocou ao lado do homem e logo ficou tão encharcado quanto o sofredor.
- Saia daqui, moleque! Ralhou o homem – é perigoso ficar aqui!
- Então porque nós dois não saímos? Retorquiu o menino, ainda sorrindo.
- Fedelho abusado! – gritou o sujeito, erguendo seu punho em tom de ameaça – fora!
- Tio – continuou a criança, no alto dos seus sete anos – porque está chorando?
- Eu não choro! – respondeu o homem – é a água do mar!
- A lágrima é tão salgada quanto o mar – interrompeu o menino, com ar matreiro – vai ver, é por isso que não percebeu estar chorando.

Com um grunhido, o homem tentou afastar o menino, mas este permaneceu onde estava. Trovões ribombavam. As ondas assumiram ainda mais estatura e a estrutura de madeira do cais gritava em convulsão. Os olhos cansados do homem torturado por si mesmo voltaram-se para o garoto. Como ele chegara ali? Como ele, sendo tão criança, não temia aquele lugar?
- Menino – disse o atormentado – este lugar vai cair no mar. Sua mãe está te esperando. Imagine você que ela deve estar preocupada contigo.
- Verdade – respondeu o garoto, solene – mamãe e papai, com certeza estão preocupados. Eles ficam tristes quando sofremos.
- Pois então – o homem percebeu que estava convencendo a criança – é melhor ir embora e acabar com a preocupação deles.
- Só vou, se o tio for comigo – retrucou calmamente o menino – as lágrimas do seu coração não são maiores do que a dos outros. O tio culpa o mundo. Culpa o Papai do Céu pelas suas perdas. Mas a culpa não é do Papai do Céu!
- A culpa é minha então?! Gritou o homem, e nesse momento uma onda quase o derrubou no chão de madeira – eu nunca roubei ou matei! Trabalhei honestamente! Perdi meu dinheiro e perdi minha família!
- Tio – disse o garoto, sério – acho que você está enganado. A prova disso é justamente o fato de ter usado o que não era só seu. Sempre trabalhou honestamente? Procurou sempre o alto lucro e o acúmulo, isso bem fez. Depois gastou a fortuna no jogo e nos braços de outras mulheres. Sua família, que sofria com sua ausência e tirania velada, estava sempre sendo espoliada. Roubada. Não roubou dinheiro, mas um bem mais valioso, não é? Quando seu trabalho foi devorado pela luxúria, tio, sua família esteve ao seu lado. Sua companheira, que sabia de tudo que você fazia, orava para sua luz antes dela mesma.

Relâmpagos rasgavam o céu. Os dedos de eletricidade, vindos do alto, se voltavam para o homem e o menino, perdidos naquele canto esquecido do mundo. Perplexo, o homem encarou o garoto. Sua face marcada e sofrida estava ardendo de dentro para fora. Suas mãos se agarraram ao parapeito de madeira, que sacolejava convulsivamente.
- O que é você?! Exclamou o sofredor, pois uma criança não falava daquele jeito, nem ninguém, ou quase ninguém, sabia de suas ações na vida privada.
- Tio, se lembra de quando conheceu a tia? Sorriu o menino.

Imediatamente, o homem se viu jovem, com vasta e escura cabeleira. Era verão e ele, a pedido de uma senhora, pegava um sapoti para a netinha dela. Foi quando passou Heloísa, de vestido azul claro, cheio de flores, caminhando pela calçada. O cabelo dela, escuro e liso, ia preso por um arco. O perfume da moça fez o peito do então jovem encher-se de um sentimento que não era lembrado por longo tempo.
- Tio – prosseguiu a criança – se lembra do nascimento dos seus filhos?

O homem, novamente envelhecido, não estava quando cada um dos seus três filhos chegou ao mundo. Estava sempre no trabalho, imerso em contas e recebimentos. Mas lembrou-se da emoção de segurar os pequenos pela primeira vez, sob os olhares da esposa. Com rapidez, o torturado os viu brincado ao longe, e percebeu que nunca dera um sorriso para eles. Jamais conversara com os filhos. Aquela verdade o feriu mais do que qualquer outro golpe.
- Eles foram seu maior tesouro, tio – disse o garoto – o mais valioso dos bens do mundo. E só quando o senhor os perdeu, viu que tinha, de fato, ficado pobre.
- Se nada tenho, por que viver? Indagou o homem.
- Você tem que viver para ficar rico de novo, oras! Respondeu calmamente o pequeno menino, com simplicidade.
- Riqueza nenhuma irá trazer minha família! Nenhuma! – exclamou o homem – nenhum abraço de cabaré irá me confortar!
- Sua família, certamente, não vai voltar nestes tempos – retrucou o garoto, com franqueza típica das crianças – mas e a outra parte de sua família que permanece na Terra, que é muito grande? Tio, você tem muito trabalho!
- Que família? Devolveu o homem, irritado.

O cais, de repente, corcoveou como um cavalo de rodeio, sob as esporas inclementes do peão de boiadeiro. A tempestade tornara-se tão forte que o infeliz homem caíra de joelhos diante do menino, que permanecia sereno ante a ira da Natureza. A qualquer momento a estrutura de madeira seria destruída.
- Tio, até você se encontrar com sua família – disse o menino – cuide de cada criança, cada senhora desvalida. Estenda suas mãos fortes para cada necessitado. – o garoto então contemplou a tempestade que açoitava aquele canto do mundo – não pode recuperar o tempo que perdeu. Mas pode usar o que lhe resta nesse trabalho. Cada criança com quem brincar, cada sorriso que der a elas, será para seus filhos que estará sorrindo! Cada senhora consolada por você, será o mesmo que consolar sua esposa.
- O que irão pensar de mim?! Exclamou o homem, balançando a cabeça diante daquela idéia estúpida de consolar quem não conhecia.
- Que importa? – respondeu o menino, rindo – além disso, esse seu novo trabalho irá servir para outros, que como você há pouco, não sabem reconhecer a verdadeira riqueza que possuem!

O homem calara diante do menino. Por um momento esquecera de sua família e até da tempestade. Nesse momento um trovão ribombou e o cais de madeira começou a ruir, diante da violência das águas. A criança, finalmente com medo, tropeçou e caiu na direção das águas revoltas. No instante em que o garoto seria tragado pelas ondas, o homem o agarrou pelos braços.
- Você não vai cair! Chega de perdas! Gritou o homem.

Saltando pelas tábuas que se soltavam, o homem escapou do cais, levando consigo o pequeno nos braços. Quando, por fim, alcançaram a terra firme, o cais foi tragado pelas ondas e o vento forte derrubou o homem. Usando seu corpo como escudo, o homem protegeu o garoto dos ventos e das águas, que tinham alcançado a faixa da praia, e o açoitou violentamente por longo tempo. As ondas salgadas batiam no corpo daquele homem, que desafiara a tempestade. Uma delas chegou a acertar em cheio os dois, mas eles não foram tragados, nem esmagados e permaneceram onde estavam, enquanto toda a praia desaparecia.

Porém, após a demonstração de força, a tempestade amainou. Raios de sol cortaram as nuvens. As ondas baixaram sua estatura e ficaram menos encrespadas. O cais desaparecera por completo. A alvorada do novo dia chegava luminosa e purificada. Com lágrimas nos olhos, o homem testemunhou o nascer do sol de mãos dadas com o menino.
- Veja tio! – exclamou a criança – o sol nasce! Todos os dias, Papai do Céu nos dá a lição do renascimento! Seja o sol tio! Ilumine a todos com sua luz!

Renascido, o homem se levantou e ergueu o menino nos braços. Sorrindo, os dois tomaram a estrada que se erguia diante deles. Para um novo começo.















Tem sua verdadeira recompensa aqueles que deixam suas casas para a uma habitação miserável levar consolação, que sujam suas mãos cuidando de chagas alheias, que se privam do sono para velar à cabeceira de um doente, que utilizam sua saúde praticando boas ações. As alegrias do mundo não ressecaram esses corações e não deixaram que eles adormecessem em meio aos prazeres ilusórios da riqueza. Esses são os verdadeiros anjos dos pobres abandonados.


Fragmento retirado do Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, Provas voluntárias – o verdadeiro sacrifício. Um Anjo Guardião. Paris, 1863. Item 26.



esse e outros contos podem ser lidos na obra Contos de Redenção, e, todo o capital obtido é revertido integralmente para o Asilo de Idosas Seara de Luz, do CEPCC (Paracambi-RJ), que ainda mantém dezenas de atividades sociais para a população carente.


A listagem de contos:

A tempestade......................................................................06

O tronco............................................................................13

O mendigo..........................................................................20

Araçari................................................................................25

A encruzilhada...................................................................33

A honra.............................................................................46

O jardim............................................................................51

O seguidor..........................................................................61

O defunto................................................................... ......65

O Jesuíta e o Pajé................................................. ............74

O preço.............................................................................81

À luz do luar......................................................................86

O perdido...........................................................................91

Perdas e ganhos.................................................................98

O orador...........................................................................103

O lavrador........................................................................110

Sebastião..........................................................................124




Um comentário:

  1. Que linda história! Como o amor salva! A poesia deste texto deve ser aplicada em nossa vida diária!


    Abraço

    Maria Conceição Vargas

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