sexta-feira, 17 de julho de 2015

Degustação de obra - A encruzilhada (Livro Contos de Redenção)



Autor Thiago Dias Trindade


A encruzilhada


“Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.” Marcos 2:17





- Faça!
- Não faço!
- Faça!
- Não!

A discussão ia longe. A noite fria de inverno parecia ainda mais escura, sem lua e nem estrelas. A luz do único poste da encruzilhada parecia ainda mais mortiça do que deveria ser.
- Faça! – insistia o homem, de olhos esbugalhados e arfante, irado – eu vou lhe pagar!

Uma gargalhada ecoou pela noite fria, fazendo o pequenino sujeito zangado encolher-se. A capa do outro esvoaçou ao sabor da brisa, enquanto as longas e aparadas costelas eram alisadas por mãos enluvadas de negro. Ao término da risada, o semblante se tornou severo. Implacável, de fato.
- O que sabe sobre pagamentos? – indagou o alto homem de trajes elegantes, semi-ocultos por uma negra capa – acha mesmo que pode me comprar? Comprar a mim?
- Trouxe cachaça! Galinha! – disse o sujeito, tentando não parecer amedrontado – quer mais? Diga! Eu pago seu preço!

O vento, novamente, correu frio. Muito frio. O homem de capa pareceu ainda mais alto e terrível. Tremendo, o homenzinho se encolheu ainda mais.
- Me tomas por um destes perdidos que aceitam vil pagamento – retrucou o severo homem – estes que se alimentam de restos e patacas! Tolo! Acha mesmo que pode me pagar com pinga e sangue?
- Ora, sempre ouvi dizer que vocês gostam de cachaça e sangue – resmungou o homenzinho – se quer outra coisa, tudo bem.
- Pinga, sangue, ou qualquer outra coisa servem apenas para abrir o apetite dos atrasados – continuou o alto cavalheiro, em tom professoral, como se não tivesse ouvido as palavras anteriores do outro – o que os perdidos usam para se alimentar é o próprio ofertante. Eles se alimentam de você, idiota!
- Não é possível! – exclamou o tacanho homem – não é o que dizem! Eu quero aquela mulher e a terei!
- E a que preço? Uma pinga? – riu de novo o cavalheiro – acha mesmo que pinga atrai coisa boa, como o amor? O que acharia se fizessem o mesmo contigo? O que aliás seria um despautério, já que és feio, burro e pobre de espírito e de cobres...Mas tente imaginar, com essa sua mente limitada que uma mulher viesse até esta encruza, munida de um frango apavorado e um litro de cachaça vagabunda. Imagine esta mulher vindo pedir sua amarração, ou até mesmo a sua morte. Você iria gostar?
- Eu sou protegido! – gritou o pequeno sujeito, com voz esganiçada – meu corpo é fechado!

Mais rápido do que o piscar dos olhos, o homem caiu no chão, de joelhos, derrubado por uma mão invisível. Em um único segundo, a garrafa de pinga estava nas mãos enluvadas do cavalheiro. Silêncio.
- Não existe corpo fechado para você – retrucou o cavalheiro, caminhando para o centro da encruzilhada – poucos possuem corpo fechado. Você não possui os elementos necessários para tal prodígio – um sorriso largo surgiu em seu rosto duro – Quer saber o que é necessário para fechar o corpo?
- Em troca de quê? – indagou a criatura mesquinha, cheia de suspeitas – não venderei minha alma!
- Até agora há pouco, estava aqui querendo vender sua alma miserável para mim – respondeu o outro – mas não! De que me serviria você? Quer saber ou não?
- Sim, eu quero saber. Disse o homenzinho.
- Fechar o corpo requer sacrifício, não é fácil – continuou o cavalheiro – é perseverar para vencer. Você, ainda nesta carne fétida, poderá vencer onde eu fracassei quando tive a chance.

O vento cessara. O frio amainara. O amanhecer estava prestes a chegar.
- Para fechar o corpo – disse o Guardião – é necessário que aprenda o significado da Caridade. Caridade é Compaixão. É ter uma Fé inabalável no Pai Maior. Fechar o corpo é aprender com os erros e seguir rumo ao Pai Maior. É um caminho duro. Eu, que sou guardião, não sirvo para satisfazer os desejos deste ou daquele. Estou aqui para ajudar na luta honesta. No bom combate. Caso aceite fechar o corpo, à serviço de Deus nosso Pai, terá minha ajuda. Caso contrário, siga sua sina. Vá buscar outro que irá lhe devorar, num amargo fim.

O Espírito silenciou. O outro engoliu em seco e refletiu. Caridade e compaixão eram palavras já ouvidas e nunca refletidas por ele. Jamais imaginara que ouviria um guardião falar em Deus. Mas também aquele guardião não pedira sua alma, nem nada absurdo, que o violentasse. Pelo contrário, o exu queria que ele apenas fizesse o que sua mãe tanto ensinara e que levara ao túmulo com a certeza ilusória de que o filho era um homem bom. O próprio sabia que não era um bom homem. Era egoísta, vingativo e invejoso. O que o espirito queria era apenas que ele fizesse o bem e se voltasse para Deus.

Então o homem se perguntou em como seria sua vida se fosse mais compreensivo e solidário. Chegou naquele instante a uma palavra: fraqueza. O guardião, como se lesse os pensamentos do outro, balançou a cabeça.
- O que é ser fraco? Indagou o cavalheiro.

Imediatamente o homem relembrou as palavras do guardião, e a revelação dele do segredo de fechar o corpo. E as comparou com seu conceito de fraqueza. O homem ergueu seus olhos para o exu, que era uma estátua escura diante dele, no centro da encruzilhada.
- Eu aceito, Guardião –disse o homem – quero ver se esse negócio de fechar o corpo funciona.
- Estarei ao seu lado, então – retrucou o outro – nos bons e nos maus momentos, serás testado com vigor. E eu, Guardião, o acompanharei até que aprendas a fechar o corpo. Serás candidato a verdadeira felicidade.

O homem sorriu. Esquecera da mulher. Ainda não compreendia direito as palavras que o espírito dissera, mas ao menos iria tentar. Ele não reparou no raio de luz branca, vindo do alto e não do horizonte, que era capaz de suplantar a luz do poste, naquela encruzilhada deserta

LEIA O FINAL DESTE CONTO EMOCIONANTE EM “Contos de Redenção”, comercializado em prol do Asilo e Creche Seara de Luz.

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