terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

“BEM AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS” – As várias faces da indulgência

Autor Alexandre Giovanelli


Misericórdia é uma palavra que apresenta diferentes nuances em seu significado. As duas primeiras acepções descritas no dicionário Houaiss servem bem aos propósitos das nossas reflexões. O primeiro sentido seria o de “sentimento de dor e solidariedade com relação a alguém que sofre uma tragédia pessoal ou que caiu em desgraça, sendo acompanhado do desejo ou da disposição de salvar ou ajudar essa pessoa”. Tem como sinônimo a compaixão e a piedade. O segundo sentido estaria relacionado a um “ato concreto de manifestação desse sentimento, como o perdão, a indulgência, a clemência”. Portanto, misericórdia é um sentimento que brota no coração de alguém, mas também se refere a uma ação desencadeada por esse sentimento.
Certamente Jesus, ao declamar dentre as bem-aventuranças, esta que nos detemos: “Bem aventurados os misericordiosos, porque obterão misericórdia” (Mateus, 5:7) estaria se referindo ao sentimento de compaixão e à expressão prática deste sentimento. E não poderia ser diferente, pois todos os ensinamentos do Mestre exigem que seus seguidores não só sejam capazes de transformar suas disposições internas, mas também que essa mudança leve à realização de obras de caridade e da capacidade de perdoar. Por isso mesmo ele faz a comparação com a árvore e os frutos: “Uma árvore boa não dá maus frutos e uma árvore má não dá bom fruto. Porquanto cada árvore se conhece pelo seu fruto...” (Lucas, 6: 44-45).
É exatamente dentro desta concepção que encontraremos no capítulo X do Evangelho Segundo o Espiritismo um aprofundamento do que se espera de uma conduta verdadeiramente misericordiosa. Segundo os espíritos aquele que é indulgente busca atenuar os defeitos do próximo, não propaga a imperfeição alheia e evita julgar com severidade aquele que incorre em falta. É tolerante, benevolente, compreensivo... A indulgência está associada, portanto, a um olhar amoroso sobre o próximo e até de empatia, pois devemos ser capazes de reconhecer, no outro, as falhas morais que da mesma forma permeiam nossos atos, pensamentos e sentimentos. A indulgência igualmente está ligada à capacidade de perdoar, pois precisamos praticar a tolerância ao erro alheio, não só em nossos julgamentos envolvendo relações entre terceiros, mas principalmente quando somos as vítimas da malícia humana.
Embora aplicada a uma série de situações, podemos assinalar três formas de manifestação da misericórdia: a clemência de Deus, a tolerância nas relações humanas e o perdão a si mesmo.
Para nos guiar nestas reflexões utilizaremos como base uma passagem muito conhecida encontrada no Evangelho de João, capítulo 8. Passemos a narrar a cena: Jesus encontrava-se em Jerusalém pregando sua boa nova, curando enfermos e expulsando demônios, como o vinha fazendo nos últimos anos. Após se refazer no Monte das Oliveiras, o Mestre desce até o Templo de Jerusalém para continuar sua missão de educar almas. Eis que se encontrava no templo, cercado pela multidão e por seus discípulos, quando surge à sua frente uma agitação incomum. São homens que trazem consigo uma mulher certamente desesperada por já prever seu fim próximo. Aqueles homens, dentre eles os fariseus e escribas, senhores da lei da época, colocam a mulher no meio da multidão e em frente a Jesus. O Rabino da Galiléia assiste a tudo de maneira compassiva. Então, de forma surpreendente abaixa sua cabeça e começa a escrever na terra com o dedo. Sabia que ali se iniciaria mais um embate entre a revelação divina e a visão embaraçada de corações amargurados e perdidos. O momento era propício para mais um ensinamento. De um lado fariseus e escribas anteviam mais uma prova para aquele galileu insolente. A mulher fora pega em adultério, crime considerado extremamente grave para aquela época e que deveria ter uma punição à altura: a pena de morte por lapidação. Sabiam que Jesus desaprovava qualquer tipo de violência, mesmo contra criminosos. Mas naquele caso Jesus teria de se posicionar contra a lei máxima da época. A lei de Moisés que havia orientado aquele povo por tantos séculos não poderia ser desprezada. Afinal de contas os pais e avós daquele povo haviam seguido a risca a tradição judaica. Já bastava a humilhação e o desrespeito da tradição perpetrada pelo povo dominador, os orgulhosos romanos. Inconcebível, portanto, que um judeu afrontasse as próprias tradições. Seria o mesmo que aliar-se ao inimigo dominador. Assim, aqueles homens voltam-se para Jesus e perguntam: “Mestre a lei manda que essa mulher seja morta por apedrejamento, o que dizeis disso?” Jesus estava ciente de sua responsabilidade. Não poderia concordar com lei tão cruel que ia de encontro a todos os seus ensinamentos de amor e perdão. Mas posicionar-se frontalmente contra a tradição se revelaria uma afronta sem precedentes. Com sua sabedoria peculiar, o amoroso galileu continuou a escrever na areia. Sabia que era preciso amolecer aqueles corações endurecidos, para que as palavras que proferiria pudessem tocá-los em seu íntimo. Naquele momento, o Mestre deve ter apelado para a misericórdia divina, orando a Deus para que iluminasse aquelas almas insensíveis no meio do qual nasceu e viveu. Era preciso preparar seus corações empedernidos para que compreendessem a lição que seria ofertada. Mais uma vez aqueles homens perguntaram, desta vez com uma inflexão de voz mais ríspida: “Mestre, o que devemos fazer?” Jesus calmante olhou para a multidão ao ser redor e deve ter pensado: “Pai perdoa-lhes seus pecados, pois não sabem o que fazem”, mas de seus lábios saíram as palavras: “Que atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecados”. Como dardo certeiro Jesus atingiu a consciência dos que o interpelavam, pois sabia que o entendimento do bem e do mal estava escrito na consciência de cada um. Era, no entanto, preciso despertar-lhes de seu esquecimento e desprezo pelas leis divinas, relembrando-os de valores como perdão, amor ao próximo, misericórdia...Ao obrigá-los a confrontar os erros daquela mulher com seus erros mais íntimos, expondo-os ao rigor da lei, implicitamente o Mestre coloca aqueles homens diante de seus próprios julgamentos perante Deus: se não há perdão para aquela mulher haveria perdão para aqueles que a acusavam?
“Na medida em que medires assim serás medido....”
Um a um dos que compunha a multidão foi se retirando; cada uma daquelas pessoas sentindo-se espicaçada pela sua própria consciência. Agora, a sós com a mulher, Jesus pergunta: “Onde estão os que te acusam? Ninguém te condenou?” E a mulher aliviada e maravilhada diante da sabedoria e santidade daquele homem tão diferente de todos os que conheceu responde: “Ninguém, Senhor”. Para a surpresa maior da mulher, Jesus não lhe passa um sermão ou faz qualquer condenação. Apenas lhe diz: “Nem eu te condeno”. Sabia ele perfeitamente e a mulher agora suspeitava, bem como os seus acusadores que partiram, que os nossos principais algozes encontram-se em nossas próprias consciências. Não veio Jesus para condenar ninguém, mas sim para ensinar o caminho, a verdade, a vida. Por isso o Mestre completa; “Vá e não peques mais”. Vá e percorra um novo caminho, de pureza e verdade, um caminho que a conduzirá à vida em abundância.
Conforme dito anteriormente, desta linda passagem encontrada no Evangelho de João, podemos fincar as bases para nossa reflexão sobre a indulgência. Inicialmente falemos sobre a clemência divina. Sabemos que a essência de Deus é o de amor em sua máxima pureza e perfeição. Ora, sendo somente amor, não é possível que a natureza de Deus comporte simultaneamente sentimentos como ódio, espírito de vingança, melindre. Esses são sentimentos humanos. Logo, Deus é amoroso e indulgente para com todos, sem exceção. Analisemos as palavras de Jesus a seguir:
“Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e os injustos” (Mateus, 5: 44-45).
Jesus é claro: a misericórdia divina abarca os justos e injustos, os bons e maus. Deus cuida de seus filhos independentemente de suas escolhas certas ou erradas. Poderíamos, então, perguntar. Nesse caso, onde fica a justiça divina? Há aqui uma confusão bastante comum. O conceito humano que temos de justiça está muito próximo da ideia de vingança. “de pagar com a mesma moeda”. É a velha lei de talião. Deus não deseja vingar-se de nada, nem de ninguém. A rigor nem mesmo podemos “ofendê-lo”, pois se o pudéssemos estaríamos atingindo de alguma forma o Criador. No Livro dos Espíritos Kardec apresenta-nos um capítulo que aborda a questão da Justiça. Mas o título do capítulo é “Lei de Justiça, Amor e Caridade”. As duas últimas palavras foram sabiamente colocadas por Kardec e os espíritos da codificação, pois a justiça de Deus esta profundamente associada ao amor e perdão infinitos. Dentro da Lei de Justiça, Amor e Caridade, analisemos especificamente a lei de causa e efeito, outro conceito tão mal interpretado. A lei de causa e efeito nada mais é do que um buril para lapidar o espírito humano e conduzi-lo cada vez mais para junto de Deus. Se o homem se depara com a dor e o sofrimento isso o faz caminhar em direção diferente daquela que gerou esta conseqüência. Nesse caso, Deus não revida, apenas ensina. Deus não pune, apenas cura uma chaga moral. Os espíritas sabemos que o céu e o inferno estão muito mais associados a um estado de consciência do que a um lugar específico do plano espiritual ou mesmo material. O quanto nos distanciamos de Deus é que dá a medida de nosso inferno íntimo. Quanto mais estivermos iludidos com o egoísmo, orgulho, crueldade, mais nos afundamos nos tormentos concienciais. Sendo assim, devemos olhar o sofrimento sobre outro prisma. É ele que tem o poder de nos tirar da ilusão do ódio, conduzindo-nos mais rapidamente para a nossa verdadeira vocação que é a de seres amorosos, próximos da natureza de Deus. Quanto mais amor, mais felicidade. Portanto, a dor não é uma punição pelo erro, mas um ato de misericórdia de Deus, para que não perpetuemos o nosso verdadeiro sofrimento original que é a incapacidade de amar de forma incondicional.
Assim, como Jesus fez com a mulher, Deus não está preocupado em nos acusar, mas sim que tomemos consciência de nossas falhas morais e avancemos sem cair nos mesmos erros. “Vá e não peques mais”. Nessa trajetória, podemos sempre contar com Deus; basta que nosso propósito seja sincero e nossa busca verdadeira. Porque Deus é indulgente com nossos erros. Lembremos sempre disso em nossa jornada.
O segundo ponto é acerca da indulgência nas relações humanas. A lógica é simples: se queremos o “perdão” de Deus, devemos ser capazes de perdoar o próximo. Lembremos, todavia, que Deus não perdoa, pois só tem alguma coisa a perdoar aquele que se “sente ofendido”. Como citado anteriormente, não é possível ao homem melindrar o Criador. O que significaria, então, as palavras de Jesus?:
“Se perdoardes aos homens as faltas que cometerem contra vós, também vosso Pai celestial vos perdoará os pecados; - mas, se não perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial também não vos perdoará os pecados” (Mateus, 6: 14-15).
O perdão de Deus deve ser considerado não como a desculpa por um erro pessoal cometido por nós, mas sim uma retomada da nossa relação com O Pai Maior que foi cortada pela força de nossos próprios atos e sentimentos. Nada mais é do que uma reconexão com os fluxos de energias espirituais superiores. O pedido de perdão pressupõe um sentimento de arrependimento por parte daquele que pede clemência. Junto ao arrependimento vem um desejo de mudar para melhor e de não mais errar. É um ato de humildade, pois tornamos explícito aquilo que realmente somos e que não gostamos. É um ato de coragem, pois traz a semente da mudança. É um ato de entrega, pois vem acompanhado da necessidade de nos reconciliarmos com Aquele que nos gerou. Como na parábola do filho pródigo, o filho desgarrado deixou o Reino do Pai para correr mundo, perdeu tudo, sofreu, arrependeu-se e voltou. Na volta é recebido de braços abertos pelo Pai, que sempre esteve e sempre estará de braços abertos para todo aquele que retomar o caminho do Reino de Deus. Sem reprovações. É desse perdão divino que Jesus falava: por um lado a misericórdia absoluta e incondicional do Pai, por outro lado o reconhecimento do filho de que, sem o Pai, nada faz sentido.
A misericórdia de Deus está sempre presente e sempre ao nosso alcance. Estamos face a face com ela em todos os dias de nossas vidas. Basta querer, basta pedir e, principalmente, basta nos abrir para ela. E é justamente neste último ponto que se resume todo o problema. Abrir-se para a misericórdia divina, ou nas palavras do Mestre, ao perdão de Deus, exige que eliminemos todas as barreiras espirituais: egoísmo, vaidade, interesses mesquinhos; e principalmente: ódios e ressentimentos, em relação ao próximo, em relação à vida e até em relação a Deus. Exige que saibamos perdoar o erro alheio, livrando-nos do amargor que turva nossa consciência espiritual. Por isso mesmo que Jesus disse:
“Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares que teu irmão tem algum coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; só então vem fazer a tua oferta” (Mateus, 5: 23-24).
Não há, portanto, como nos reconectarmos com o Paraíso perdido se trazemos o inferno em nossos corações. Por isso é essencial que aprendemos a perdoar o próximo.
O último ponto tem a ver com o perdão a si mesmo. Já foi dito que quando pedimos perdão a Deus é porque estamos arrependidos por uma falha cometida ou observada em nossas almas. Numa certa medida, o arrependimento pode ser considerado como um lampejo de consciência espiritual. Um detonador para as mudanças necessárias em nosso ser. A partir daí podemos seguir o caminho da regeneração ou ficarmos na estagnação; neste último caso, estaremos dando asas ao remorso ou a tortura de si mesmo. Nesse ponto exercitemos nossa criatividade e imaginemos um outro desdobramento para a passagem do capítulo 8 de João. Divaguemos: No momento em que Jesus diz: “aquele que tiver sem pecado que atire a primeira pedra”, um a um dos acusadores começa a se retirar. Mas eis que a mulher grita para todos: “Não. É preciso que todos cumpram a lei, pois quero pagar meus pecados”. Certamente que esse acréscimo soaria estranho. Por quê? Estamos aí diante de um rigor que ultrapassa o próprio rigor de Jesus e de Deus. A mulher estaria chamando para si uma punição auto-infligida, a qual não foi determinada pela Justiça Divina. Ao contrário do ato de pedir perdão a Deus, estaríamos diante de um caso de orgulho daquela mulher, pois que ela não quis se submeter à vontade do Pai, mas sim à sua vontade. Seria um ato de covardia, pois mais difícil que morrer por um pecado é viver tendo que extirpar aquele pecado de si. É um ato de revolta consigo mesmo, pois não acredita em sua regeneração. Embora o fim proposto para a passagem descrita seja um tanto absurdo é impressionante a quantidade de pessoas que tomam a mesma decisão ao perpetuarem seus sofrimentos através de atitudes de pessimismo, baixa auto-estima, fatalismo diante da vida e até de busca pelo sofrimento, de maneira consciente ou inconsciente ao gerarem distúrbios psicológicos e físicos. Conforme nos diz Joanna de Angelis , somente uma atitude mental amorosa é capaz de parar as engrenagens da doença que se instalam em decorrência dos distúrbios da consciência de culpa. Ou seja, a autopunição gera mais sofrimento que poderia ser evitado com a simples atitude de se comprometer com a reforma de si mesmo, continuando a trajetória rumo ao Reino de Deus. Para isso, o primeiro passo é perdoar a si mesmo. Perdoar a si, não significa ser condescendente com os próprios erros, caindo nas malhas da auto-piedade, mas sim reconhecer seus erros e limites e buscar cultivar aquilo que tem de melhor. Ou ainda, conforme dito pelos espíritos: “Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más” .
De tudo que foi dito devemos sempre nos lembrar que o Deus que os espíritas e os verdadeiros cristãos, em geral, cultivam é aquele que semeia amor e não ceifa esperanças. É aquele que levanta e não arrasa. É um Deus vivo que vive agora neste momento e ouve e se comove com as minhas dores, com as suas dores, mas que não quer que fiquemos caídos no chão, pois nos dá a mão todas as vezes que falhamos e nos convida a prosseguir, sempre. Ele só pede uma única coisa: que sejamos capazes de receber seu amor. Como? Conforme foi descrito: abrindo-se para a misericórdia divina, através do perdão ao próximo, de si mesmo e da prática da caridade. Lembremos, para tanto, do trecho final da célebre oração de São Francisco que nos fala diretamente ao coração:
“Ó Mestre, Fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna”.

3 comentários:

  1. excelente! Parabéns!

    Mauro Cavalcante

    ResponderExcluir
  2. Muito bom! Irei estudá-lo com minha familia hoje em nosso culto no lar!

    ResponderExcluir
  3. Excelente texto! Denota toda capacidade reflexiva do autor, sempre pautado na moral cristã e em sua aplicação prática.

    Parabéns e continue escrevendo, Sr. Alexandre!

    Otávio Augusto, Belo Horizonte

    ResponderExcluir