O defunto
Incrédulo, assistia o espetáculo.
Idas e vindas de gente que nem lembrava, trajando suas melhores vestes. Alguns
tinham ido só para ver se era verdade a intempestiva notícia. Outros traziam
lágrimas sinceras no rosto. Uns poucos, no entanto, traziam ares de escárnio.
Uma senhora de aspecto humilde
fez uma prece aos pés do falecido Jarbas, cujo espírito, atônito, fitava tudo.
O finado havia gritado, gesticulado para chamar a atenção de qualquer pessoa,
mas não foi percebido por ninguém. Berrara até cansar.
- Doutor Jarbas, fique em paz –
disse a velhinha pobre – ajudou muita gente. Deus o recompensará muito!
Jarbas, finalmente, reconheceu a
mulher. Era uma costureira, cujo trabalho apreciava. Pagava-lhe sempre uma boa
gorjeta e vez ou outra entregava a ela algumas roupas velhas para os filhos
dela. Chegou a comprar um ou dois livros para eles, certa vez, mas essa
recordação custou a vir na mente do falecido.
O velho advogado, agora defunto,
viu a costureira ir embora. Pareceu a ele que a mulher trazia uma estranha luz.
Logo, porém, as atenções de Jarbas se desviaram para um diálogo entre dois
antigos conhecidos.
- Se o nosso bom Jarbas
Cavalcante visse aquela velha rezando por ele – disse um homem calvo, com
expressão de deboche – pularia do caixão e a esganaria. Ainda bem que não
puseram um padre para arengar coisas que não existem!
- A velha veio se despedir, Mourão
– ponderou o outro, cujo nome era Antenor – ela fez do jeito que sua rústica
mentalidade permitiu. Afinal, muitos precisam de cabresto e que cabresto é
melhor do que um Deus fictício que propõe um Reino onde todos são príncipes?
- Muito preciso seu comentário,
Antenor – concordou Mourão – Jarbas iria cumprimentá-lo por isso. Só os
ignorantes se valem de uma força nunca vista e não sentida. O mundo é dos
Homens e só. Quando morremos, acaba-se e pronto. A única vida além da morte é a
que fica nas lembranças dos amigos.
Jarbas ouviu aquelas palavras com
desconforto. Ele fora o divulgador de conceitos ateus para aqueles dois amigos,
e, de fato, em outra situação ficaria satisfeito por ouvi-los falar daquela
maneira.
Nunca, jamais, em tempo algum, o
nobre defunto imaginaria que os ignorantes tivessem razão. Porém, a poucos
metros, seu corpo frio estava ali, semi-coberto por flores brancas de gosto
duvidoso. Era toda a situação muito esquisita.
- Você já percebeu que está
errado em seus conceitos? Indagou uma voz feminina.
Jarbas se virou e viu uma
distinta senhora sorrindo para ele. Ela vestia um longo vestido violeta claro e
falava visivelmente com o finado advogado.
- Você me vê! – exclamou Jarbas,
passando a mão na cabeça suada e desgrenhada – caramba!
- Pois sim – respondeu a senhora
– vejo com os olhos e com o coração. Muitos aqui o vêem também, mas com os
olhos do coração.
- Como eu estou aqui e ali? –
indagou Jarbas, pontando para seu cadáver inerte – isso não pode ser a morte?!
- Não existe morte, Jarbas –
explicou a enigmática mulher – apenas deixamos nosso corpo físico, que nos
funciona como uma casca provisória.
A mente esgazeada do advogado
girou mais ainda. Tentou ajeitar o cabelo encanecido. Seu peito ardia
violentamente desde que se descobria em dois lugares diferentes.
- Sempre foi dito que há o Céu e
o Inferno. Onde estão?! Exclamou Jarbas, procurando por uma saída de sua
situação.
- Trazemos o Céu e o Inferno
dentro de nós – respondeu calmamente a dama que parecia emanar uma tênue
luminescência – agora, meu querido, é hora de acalmar o coração. Entenderá tudo
em breve. Deve
descansar.
- Descansar? – repetiu o velho
doutor com ironia – ao que vejo descansarei pela eternidade nesta capela tosca.
Ou me será facultado sair daqui?
- Até mesmo após o desenlace há o
livre-arbítrio, Jarbas – disse a mulher – para tudo há ação e reação. Ouça meu
conselho e se acalme.
- Aliás, me perdoe – atalhou
Jarbas, percebendo que sua situação esdrúxula o fizera esquecer os bons modos –
esta minha condição me alterou tanto que perdi a compostura por um momento.
Como se chama, distinta senhora?
- Mariana – respondeu a dama, com
um sorriso – vim assisti-lo em sua atual condição. Posso, aqui mesmo, esclarecê-lo
em alguns pontos em que perguntas se fazem presentes. Após, acompanhá-lo-ei a
uma estância específica.
- Pois bem – resfolegou Jarbas,
percebendo a autoridade que Mariana parecia dispor – as pessoas aqui não me
vêem porque sou um fantasma. Ficarei aqui para sempre? Se estou mesmo morto,
porque suo e tenho violentas palpitações cardíacas?
- Avaliar-se fantasma não é de
todo errado, ainda que seja um termo não usado por nós – respondeu rapidamente
Mariana, denotando eficiência e até mesmo certa expectativa naquelas
inquirições apresentadas por Jarbas – espírito é um termo melhor. Como já disse
a você, ninguém o vê com os olhos. No entanto pode ser percebido com o coração.
– a dama contemplou a reunião à volta do corpo inerte do advogado – não se
preocupe, por ora, com conceitos. Creio ser mais urgente para você a questão do
suor e das palpitações. És recém readmitido nos Planos Espirituais e os reterá
por algum tempo ainda, devido a memória orgânica não estar trabalhada. Eleve
seus pensamentos a Deus que esses sintomas diminuirão.
- Deus está onde, presumindo-se
que Ele exista? Continuou o aturdido advogado.
- Deus está em Tudo! – sorriu
Mariana, enquanto Jarbas se apoiava cansadamente na borda do próprio caixão –
tudo é obra Dele. Ocorre que você não o sente, justamente por que não quer. Já
ouviu a máxima: Na Casa de Meu Pai há muitas Moradas? Pois bem, Nosso Pai está
em todas elas, mas Sua Face Excelsa só pode ser vista em esferas mais elevadas.
Entendeu?
- Porque nesses lugares mais
altos, enxerga-se Deus com os olhos do coração. Sentenciou Jarbas, espantando a
si próprio com a reflexão.
- Sim. Atalhou a outra meneando a
cabeça venerável em acordo.
- Não obstante, são respostas
diferentes do consenso dos vivos, mesmo dentre os líderes da área religiosa –
argumentou Jarbas, fitando seus dois velhos conhecidos – Como pode ser?!
Mariana contemplou o pupilo com
doçura quase palpável. A tranqüilidade dela o afetava. O antigo advogado se
voltou para a família que tanto amava e zelava com fervor. Leda, sua esposa,
estava cercada pelos filhos crescidos. A viúva e os órfãos traziam lágrimas
discretas nas faces fatigadas. À medida que fixava os olhos na família, Jarbas
divisou vultos, e depois rostos bem definidos. Essas estranhas faces, próximas
aos amados do finado, eram serenas e venerandas, como era a de Mariana.
- Quem são eles? Indagou Jarbas a
Mariana.
- Ah, já vês os amparadores –
elogiou a doce entidade – são os amigos espirituais de sua família. Todos os
encarnados são acompanhados por entidades que são atraídas e mantidas, em
muitos casos, por simpatia vibracional. É um bom tema de estudo, mas é profundo
nesse momento. Prometo que entenderá melhor...
- Leda sempre foi uma cristã
devota – proferiu Jarbas, com um suspiro e interrompendo Mariana – e eu muito
lutei com ela por isso. Temia que meus filhos fossem escravos da religião.
- Sei disso – volveu a benfeitora
de Jarbas – Leda sempre foi uma pérola em sua vida. As crianças também.
- Falhei com meus filhos.
Resmungou o novo defunto.
- Não por isso. Ensinou a eles a
necessidade das leis dos Homens. A coesão dos atos – esclareceu a dama – você é
um homem bom para sua família, um bom cristão, ainda que nunca tenha se
assumido temente à Deus.
- Não entendo – balbuciou o homem
– como posso ter sido um bom cristão?
- Ao Homem será dado conforme
suas obras, Jarbas – asseverou Mariana – você sempre buscou a justiça dos
Homens. Pagava as contas com rigor, mas sabia perdoar os atrasos nos pagamentos
daqueles que te deviam. Foi um exemplo para sua comunidade, no que toca a
retidão moral. Doava recursos para que sua esposa ajudasse os necessitados, e
não impedia seus compromissos religiosos. Quantas palavras amigas dera aos
desesperados que cruzaram seu caminho... Achava que suas práticas não era
Caridade?
- Era minha obrigação perante a
Sociedade! Insistiu o velho advogado.
- Auxiliar o próximo – atalhou
Mariana – é amar a Deus! Sua fé na Humanidade o fez um bom cristão.
- O que fiz foi tão pouco!
Lamentou Jarbas meneando a cabeça.
- Decerto – concordou a entidade
– mas ainda assim o que fez é importante. Nada é desconsiderado ou pouco
valioso.
- Poderia ter feito mais.
Resmungou o finado.
- Poderia mesmo. Sentenciou
Mariana.
Jarbas se silenciou. Sua vida
corria diante de seus olhos cansados. As palavras que lançara contra Deus
amargavam sua boca. Uma súbita fraqueza o balançou. Mariana, com delicadeza, o
amparou.
- No todo – balbuciou Jarbas – eu
mereço o Inferno. Posso ter feito coisas boas aos olhos de Deus. Mas o número
de coisas ruins é deveras grande.
- A árvore que plantaste é
mirrada – argumentou Mariana – mas seus frutos são doces. Não se lembra da
costureira Anastácia, que aqui veio? Muitos dos beneficiados por você não
puderam vir em termos de matéria, ou corpo presente como você diria. No
entanto, muitas orações chegam até ti. E são estas que mais contam!
- Sempre acreditei que a Ciência
fosse a Verdade! Exclamou o recém desencarnado.
- Você está correto, em parte –
devolveu a benfeitora – a Ciência, como os encarnados chamam, é Obra de Nosso
Pai. Todos os processos, fórmulas e equações...Tudo emana de Deus! O problema é
que alguns acreditam que podem controlar a Ciência. No entanto, a Ciência, que
ocorre por inspiração de Nosso Pai aos seus filhos deveria ser vista como um
gesto natural de Deus.
- Sempre neguei a existência de
Deus! Bradou Jarbas.
- E sempre foste um bom filho
dele. Interrompeu a outra.
- Enquanto eu via meu corpo sendo
preparado, pensava em minha família lançada à própria sorte. Agora sei que eles
estão em melhor situação do que eu...
- Mais uma vez seu raciocínio foi
muito correto. Disse Mariana.
- Para onde irei? Perguntou o
advogado, certo que havia chegado a hora de apartar-se de seu corpo frio.
- Irá a um lugar, semelhante a um
hospital, onde passará por refazimento e receberá outras explicações –
respondeu docemente a entidade – a separação, breve, de sua família e de seu
mundo será benéfica para todos. Um dia todos se reencontrarão e traçarão novos
planos de evolução.
Os olhos de Jarbas pousaram em
seus dois amigos ateus. Preocupou-se imensamente com eles. As mãos leves e
confiantes de Mariana pousaram nos ombros fatigados do ex-advogado.
- Seus amigos acordarão para a
Verdade – disse a mulher – talvez você, um dia, possa ajudá-los. Lembre-se:
Deus nos ama tanto, que nos perdoa as más ações, ainda que tolas. Ninguém
ficará para trás.
- Ajudarei, sim. Proferiu Jarbas,
com confiança.
- Agora chegou a hora de ir –
anunciou Mariana – os laços derradeiros que o prendiam aqui foram cortados.
Amparando o velho ex-ateu, que se
descobrira Servo de Deus, Mariana se tornou luz e o levou dali, para um posto
de recuperação. Jarbas, um dia, iria retornar e traria em sua fronte a luz da
Cruz Redentora que todo bom servidor emana.
O verdadeiro homem de bem é aquele que pratica a Lei da Justiça, do
Amor e da Caridade em toda sua pureza. Questiona sua consciência sobre seus
próprios atos, pergunta a si mesmo se não violou essa Lei, se não fez o mal, se
fez todo o bem que podia, se de propósito não deixou escapar uma ocasião de ser
útil, se ninguém tem queixa dele, enfim, se fez aos outros tudo o que gostaria
que os outros lhe fizessem.
Fragmento retirado do Evangelho
Segundo o Espiritismo, Capítulo XVII, O homem de bem. Item 3.
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