Autor Thiago Dias Trindade
A encruzilhada
“Não são os que têm saúde que
precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os
pecadores.” Marcos 2:17
- Faça!
- Não faço!
- Faça!
- Não!
A discussão ia longe. A noite
fria de inverno parecia ainda mais escura, sem lua e nem estrelas. A luz do
único poste da encruzilhada parecia ainda mais mortiça do que deveria ser.
- Faça! – insistia o homem, de
olhos esbugalhados e arfante, irado – eu vou lhe pagar!
Uma gargalhada ecoou pela noite
fria, fazendo o pequenino sujeito zangado encolher-se. A capa do outro esvoaçou
ao sabor da brisa, enquanto as longas e aparadas costelas eram alisadas por
mãos enluvadas de negro. Ao término da risada, o semblante se tornou severo.
Implacável, de fato.
- O que sabe sobre pagamentos? –
indagou o alto homem de trajes elegantes, semi-ocultos por uma negra capa –
acha mesmo que pode me comprar? Comprar a mim?
- Trouxe cachaça! Galinha! –
disse o sujeito, tentando não parecer amedrontado – quer mais? Diga! Eu pago
seu preço!
O vento, novamente, correu frio.
Muito frio. O homem de capa pareceu ainda mais alto e terrível. Tremendo, o
homenzinho se encolheu ainda mais.
- Me tomas por um destes perdidos
que aceitam vil pagamento – retrucou o severo homem – estes que se alimentam de
restos e patacas! Tolo! Acha mesmo que pode me pagar com pinga e sangue?
- Ora, sempre ouvi dizer que
vocês gostam de cachaça e sangue – resmungou o homenzinho – se quer outra
coisa, tudo bem.
- Pinga, sangue, ou qualquer
outra coisa servem apenas para abrir o apetite dos atrasados – continuou o alto
cavalheiro, em tom professoral, como se não tivesse ouvido as palavras
anteriores do outro – o que os perdidos usam para se alimentar é o próprio
ofertante. Eles se alimentam de você, idiota!
- Não é possível! – exclamou o
tacanho homem – não é o que dizem! Eu quero aquela mulher e a terei!
- E a que preço? Uma pinga? – riu
de novo o cavalheiro – acha mesmo que pinga atrai coisa boa, como o amor? O que
acharia se fizessem o mesmo contigo? O que aliás seria um despautério, já que
és feio, burro e pobre de espírito e de cobres...Mas tente imaginar, com essa
sua mente limitada que uma mulher viesse até esta encruza, munida de um frango
apavorado e um litro de cachaça vagabunda. Imagine esta mulher vindo pedir sua
amarração, ou até mesmo a sua morte. Você iria gostar?
- Eu sou protegido! – gritou o
pequeno sujeito, com voz esganiçada – meu corpo é fechado!
Mais rápido do que o piscar dos
olhos, o homem caiu no chão, de joelhos, derrubado por uma mão invisível. Em um
único segundo, a garrafa de pinga estava nas mãos enluvadas do cavalheiro.
Silêncio.
- Não existe corpo fechado para
você – retrucou o cavalheiro, caminhando para o centro da encruzilhada – poucos
possuem corpo fechado. Você não possui os elementos necessários para tal
prodígio – um sorriso largo surgiu em seu rosto duro – Quer saber o que é
necessário para fechar o corpo?
- Em troca de quê? – indagou a
criatura mesquinha, cheia de suspeitas – não venderei minha alma!
- Até agora há pouco, estava aqui
querendo vender sua alma miserável para mim – respondeu o outro – mas não! De
que me serviria você? Quer saber ou não?
- Sim, eu quero saber. Disse o
homenzinho.
- Fechar o corpo requer
sacrifício, não é fácil – continuou o cavalheiro – é perseverar para vencer.
Você, ainda nesta carne fétida, poderá vencer onde eu fracassei quando tive a
chance.
O vento cessara. O frio amainara.
O amanhecer estava prestes a chegar.
- Para fechar o corpo – disse o Guardião
– é necessário que aprenda o significado da Caridade. Caridade é Compaixão. É
ter uma Fé inabalável no Pai Maior. Fechar o corpo é aprender com os erros e
seguir rumo ao Pai Maior. É um caminho duro. Eu, que sou guardião, não sirvo para
satisfazer os desejos deste ou daquele. Estou aqui para ajudar na luta honesta.
No bom combate. Caso aceite fechar o corpo, à serviço de Deus nosso Pai, terá
minha ajuda. Caso contrário, siga sua sina. Vá buscar outro que irá lhe
devorar, num amargo fim.
O Espírito silenciou. O outro
engoliu em seco e refletiu. Caridade e compaixão eram palavras já ouvidas e
nunca refletidas por ele. Jamais imaginara que ouviria um guardião falar em Deus. Mas também aquele guardião não pedira sua alma, nem nada absurdo, que o violentasse. Pelo contrário, o
exu queria que ele apenas fizesse o que sua mãe tanto ensinara e que levara ao
túmulo com a certeza ilusória de que o filho era um homem bom. O próprio sabia
que não era um bom homem. Era egoísta, vingativo e invejoso. O que o espirito queria
era apenas que ele fizesse o bem e se voltasse para Deus.
Então o homem se perguntou em
como seria sua vida se fosse mais compreensivo e solidário. Chegou naquele
instante a uma palavra: fraqueza. O guardião, como se lesse os pensamentos do outro,
balançou a cabeça.
- O que é ser fraco? Indagou o
cavalheiro.
Imediatamente o homem relembrou
as palavras do guardião, e a revelação dele do segredo de fechar o corpo. E as
comparou com seu conceito de fraqueza. O homem ergueu seus olhos para o exu,
que era uma estátua escura diante dele, no centro da encruzilhada.
- Eu aceito, Guardião –disse o homem –
quero ver se esse negócio de fechar o corpo funciona.
- Estarei ao seu lado, então –
retrucou o outro – nos bons e nos maus momentos, serás testado com vigor. E eu, Guardião, o acompanharei até que aprendas a fechar o corpo. Serás candidato a
verdadeira felicidade.
LEIA
O FINAL DESTE CONTO EMOCIONANTE EM “Contos de Redenção”, comercializado em prol
do Asilo e Creche Seara de Luz.
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